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segunda-feira, 20 de junho de 2016

O fim do jornalismo romântico

Material extraído do portal Comunique-se

É possível dizer que a fase para os jornalistas não é das melhores, ou que, por outro lado, nunca esteve tão boa.

Com as mudanças que aconteceram na área, sobreviveram aqueles que souberam se adaptar ao mercado. Do contrário, os mais antigos sofreram desde a tentativa de adaptação das redações até agora, em sua maioria desempregados, tentando se recolocar no mercado digital sem ter os pré-requisitos para manter-se nele — ainda insistem no jornalismo romântico. Este artigo busca trazer um panorama das principais mudanças que aconteceram no jornalismo do ponto de vista prático, de publicações, mensuração de resultados, demanda, passando pela morte dos títulos fantasia com a chegada do SEO, a agilidade que tirou da redação figuras como o pauteiro e o revisor (e, em algumas, o fechamento) e a “buzzfeedização”, que transformou reportagens em listas de apelo sentimental.

Introdução

Voltando um pouco no tempo (mas não muito) e fazendo uma breve recapitulação do que aconteceu com o jornalismo nos últimos anos (desconsiderando vários avanços tecnológicos e sociais, com o intuito de abreviar a análise, realmente), podemos começar por 2001, quando o Google lançou o que viria a ser o Google News: a seção de “últimas notícias”, alimentada com conteúdo de mais de 100 jornais on-line de língua inglesa. Surge, a partir de então, certo desconforto com relação às novas formas de produção e propagação de notícias.

Em 2005 o diário americano The New York Times anunciou a integração das redações impressas e on-line. Em 2006, o UOL, um dos primeiros portais de conteúdo brasileiro, completou uma década de existência e tornou o modelo de portal comum no Brasil. Paralelamente, o diário inglês Daily Telegraph lançou um manual de estilo para blogs, com objetivo de capacitar repórteres para escreverem nos blogs do veículo. Podemos dizer que nesse momento foi legitimada a existência do que viria a incomodar bastante a vida de alguns jornalistas: a figura do “blogueiro”. Com isso, entrou em discussão o exercício da profissão e, em seguida, no Brasil, colocou-se em questão inclusive a obrigatoriedade do diploma para a prática do jornalismo.

Enquanto isso, o Guardian adotou o modelo “Web first”, no qual notícias de correspondentes estrangeiros e de jornalistas de negócios eram publicadas primeiro na internet. A partir de 2008 inúmeros cases de manifestações e grandes eventos transmitidos em tempo real (boa parte via Twitter) trouxeram essa necessidade à tona. No mesmo ano, o NYTimes.com anunciou que apostaria na opinião de especialistas para anexar pontos de vistas às notícias quase que instantaneamente.

A palavra “fim”, um tanto apocalíptica, foi escolhida propositalmente para este artigo porque acompanha o drama e o sentimento com que as pessoas costumam lidar com o surgimento de novos meios. Um bom exemplo sempre recorrente é o de quando falava-se em “fim do rádio” com a chegada da televisão — e, no entanto, isso demorou mais para se aproximar do fim do que imaginavam (se é que chegou a esse “fim”). A questão precisa ser vista com um olhar mais otimista de renovação, movimento e adaptação — e menos pessimista de “fim”. Novas formas de consumo e novas formas de demanda pedem por novas formas de pensar o jornalismo a cada dia.


A “buzzfeedização” do jornalismo

Criado em 2006 por Jonah Peretti, ex-Huffington Post, o BuzzFeed chamou atenção logo em seus primeiros anos por popularizar notícias em formato de listas, testes, GIFs e memes — de gatos, principalmente. Modelos esses que foram depois adaptados pelos concorrentes, mas não com o mesmo sucesso porque não adotaram como cultura de empresa o jornalismo inovador, estratégico e participativo que atende às necessidades de cada ambiente e público digital.

Ao contrário do pensamento por trás do “Se tiver sangue, é manchete”, as pessoas demonstram querer matérias mais construtivas e otimistas. Isso é sabido graças a pesquisas e observações feitas a partir de compartilhamentos de notícias na maior rede social atualmente, o Facebook. Pesquisadores[1] acompanharam a lista das matérias do New York Times mais compartilhadas por e-mail durante seis meses de 2013 e descobriram que as pessoas tinham uma tendência muito maior de compartilhar matérias que despertavam sentimentos positivos. “O que é notícia, então?” é o questionamento que paira sobre os comunicadores. Os extremos devem ser equilibrados. Nem tanto o vídeo de gatinho que é sucesso de compartilhamento; nem tanto o enfoque em violência e desastres. Nem tanto o “caça-clique” com fofocas da vida de celebridades; nem tanto o sensacionalismo em cima da morte deles. Essa linha tênue do jornalismo é que precisa ser trabalhada por todo mundo, inclusive pelos leitores.

Listas, gifs e vídeos remetem às novas formas de consumir conteúdo. Com menos tempo e mais opções e recursos tecnológicos, é raro conseguir manter uma pessoa com uma leitura longa por muito tempo na mesma aba do navegador. Multitasks, as pessoas realizam várias atividades ao mesmo tempo. Conseguir levar alguém à página é um desafio; mantê-la lá é outro. Com as listas, a reportagem fica mais rápida e objetiva, sendo possível, ainda assim, manter o nível de grandes reportagens, mudando somente a formatação da notícia, ressaltando que não é preciso cair o nível do jornalismo.

Anúncios são (boas) notícias

Os anúncios também são notícias e as marcas aprenderam a usar a internet muito bem a seu favor. Há muito tempo os publieditoriais (ou posts patrocinados) são a principal fonte de renda dos blogueiros e alvo de discussões sobre ética. Um caso emblemático é o da blogueira fitness Gabriela Pugliesi, denunciada por consumidores em 2014 porque estaria promovendo conteúdo publicitário sem anunciá-lo como tal. O Conar (Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária) abriu um processo para investigar seu blog, Tips4Life, que também tem um perfil com milhares de seguidores no Instagram e no Facebook.

A suspeita é de que ela estaria elogiando produtos e divulgando marcas que pagaram pela propaganda positiva sem explicitar a parceria. Os chamados influenciadores (pessoas que transmitem uma mensagem e que geram impacto nas práticas de outras pessoas) passaram a competir com portais e outros veículos por oferecerem a possibilidade de resultados mais assertivos, já que falam para um público alvo bastante específico e que confia na opinião do influenciador em questão. Em alguns casos, apesar de a audiência ser até menor em números, o resultado é mais fácil de ser medido. E há de se considerar que muitos vloggers já ultrapassaram, em números, circulações de grandes revistas de nicho no Brasil.

Colaboração do leitor

Não é mais preciso ter um repórter em cada bairro da cidade de plantão. Com o mais simples dos smartphones, os leitores podem colaborar enviando texto, áudio e vídeo, contribuindo em tempo real para noticiar alguma ocorrência e manter a redação informada até a chegada da equipe de reportagem no local. Isso tem sido ampliado a aplicativos de colaboração para trânsito, alagamentos e outros serviços. Os equipamentos para gravar um vídeo, por exemplo, já são mais baratos e acessíveis. Em alguns telejornais, como o SPTV, da Rede Globo, os telespectadores enviam seus vídeos, que vão ao ar durante o programa e até fazem entradas ao vivo usando aplicativos de celular.

O SEO matou o título fantasia e os sinônimos

O SEO (Search Engine Optimization) é a prática de otimização, seguindo um conjunto de estratégias e regras, para melhorar o posicionamento nos buscadores especializados em busca por palavras-chave, que ganharam muita força no final dos anos 90 com o intuito de ajudar os usuários a encontrar informações rapidamente e sem custo algum. O SEO começou a ser adotado em grandes redações no Brasil, como na Editora Abril, a partir de 2007, aproximadamente. No SEO, quem manda é a palavra-chave do texto — o que elimina os românticos e criativos títulos-fantasia, substituídos por títulos diretos e objetivos, com a palavra-chave no começo, no “olho”, na url, na meta descrição e repetida algumas vezes ao longo do texto (levando em conta vários fatores, a média de densidade da palavra-chave recomendada no texto é de, geralmente, 5%). Ou seja, também é o fim da caça por sinônimos. “Cabelos” eram “cabeleira”, “madeixas”, “fios” e agora são só “cabelos” várias vezes para fortalecer a palavra-chave. Esses minutos de brainstorm
para títulos e sinônimos foram canalizados para pesquisar a busca pelo termo em questão, concorrência, melhor termo, títulos objetivos e atrativos.

O Google e o Google News

Enquanto este artigo era escrito, o Google anunciou uma parceria com oito veículos europeus para inovar o jornalismo on-line. A DNI, Digital News Initiative, mostra que o Google tem forte interesse na indústria de notícias e tem entendido que o jornalismo melhora a experiência para os usuários. Antes disso, a empresa tinha sido acusada de não proteger os direitos dos autores e, desta vez formalmente, por concorrência desleal, chegando a ficar fora do ar na Espanha depois de pressionado a pagar direitos autorais. Essa seria, então, uma maneira de garantir o bom relacionamento com a imprensa. Sobre o assunto, Caio Túlio Costa, jornalista e executivo na área de comunicação digital, escreveu:

Os jornais, no mundo inteiro, não têm conseguido quebrar a resistência do Google quanto a pagar diretamente pelo uso de seu conteúdo, seja nos resultados da busca seja nos resultados do Google News. Aliar-se ao Google, contudo, pode ser uma solução desde que os jornais tenham seus direitos protegidos e as contas mostrem que vale a pena dar as mãos para a mais poderosa empresa de mídia do planeta. A quebra da assimetria tem de se dar pela força que as publicações conseguem ao se unirem. Pelo tamanho do inventário possível de páginas para receber publicidade em direta proporção à qualidade, e contemporaneidade, do conteúdo jornalístico oferecido (Costa, 2014).

Facebook e o “instant articles”

Simultaneamente à produção deste artigo, o Facebook também anunciou uma novidade: o Instant Articles, em português, Artigos Instantâneos — ferramenta para oferecer uma experiência mais fluida e agradável para a leitura de notícias dentro da própria rede social. Não há nenhum tempo a perder: o tempo médio entre um usuário clicar em um link de notícias e começar a ler o texto é de oito segundos e, segundo a rede social, é tempo demais. Além da velocidade, a empresa garante que alterará seu esquema publicitário, permitindo que os anunciantes mantenham a receita total dos anúncios vendidos dentro da rede e vendendo publicidade para as empresas, neste caso mantendo 30% do dinheiro recebido. O alvo são grandes sites como BuzzFeed, The New York Times e National Geographic.

Considerações finais

O jornalismo teve a fase de resistência dos veículos impressos quanto à “ameaça” digital; teve a fase do pânico, em que remetia ao inevitável “fim do impresso”; teve a fase, enfim, da tentativa de adaptar as redações para as necessidades da internet; a fase de trocar a mão de obra, trocar os jornalistas “com mais tempo de casa” pelos menos experientes, porém com mais tato para as novas mídias; chegada a fase dos cortes, das demissões em massa, do enxugamento das redações, dos fechamentos de grandes títulos. Tudo isso, romântica e exageradamente falando, vai ficar na cabeça das pessoas quando se lembrarem desses anos de conflito e adaptação entre as mídias.

Os jornalistas precisam abrir mão da visão romantizada e glamourizada da profissão, pois a versão dos filmes já não existe mais. É preciso ser inteligente e ágil para compreender a internet e seus dados (tendências, contextos, métricas). Mais do que “estar” on-line ou “estar” nas redes sociais, é preciso ser flexível para entender como funcionam, quem é o público, do que precisam e o que pretendem. A receita não é “entrar na onda porque é moda”, “porque está todo mundo lá” — deve haver um propósito, um planejamento, uma estratégia. É quase como tratar o jornalismo como ação de publicidade — e a que ponto chegamos? Ao ponto de encarar como ação publicitária mesmo e fazer as coisas funcionarem.

O inesperado surpreende-nos. É que nos instalamos de maneira segura em nossas teorias e ideias, e estas não têm estrutura para acolher o novo. Entretanto, o novo brota sem parar. Não podemos prever como se apresentará, mas deve-se esperar sua chegada, ou seja, esperar o inesperado. E quando o inesperado se manifesta, é preciso ser capaz de rever nossas teorias e ideias, em vez de deixar o fato novo entrar à força na teoria incapaz de recebê-lo (Morin, 2011).

[1] Jonah Berger, professor da escola de administração Wharton e autor de “Contagious: Why Things Catch On” (Contagioso: Por que as coisas pegam, em tradução livre), e sua colega Katherine Milkman.

Este artigo foi produzido como trabalho de conclusão do curso de MBA em Redes Sociais, Colaboração e Mobilidade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC–SP) que concluí no primeiro semestre de 2015.

*Jornalista e redatora-chefe do Blog Testosterona. Reveza entre chá verde e cerveja, batons estranhos e livros incríveis, corridas e cochiladas. Texto originalmente publicado no Medium. E-mail: francini.vergari@gmail.com.

domingo, 1 de janeiro de 2012

Echoes




O escritor e semiólogo Umberto Eco vive com sua mulher em um apartamento duplo no segundo e terceiro andar de um prédio antigo, de frente para o palácio Sforzesco, o mais vistoso ponto turístico de Milão. É como se Alice Munro morasse defronte à Canadian Tower em Toronto, Hakuri Murakami instalasse sua casa no sopé do monte Fuji, ou então Paulo Coelho mantivesse uma mansão na Urca, à sombra do Pão de Açúcar. "Acordo todo dia com a Renascença", diz Eco, referindo-se à enorme fortificação do século XV. O castelo deve também abrir os portões pela manhã com uma sensação parecida, pois diante dele vive o intelectual e o romancista mais famoso da Itália.
Um dos andares da residência de Eco é dedicado ao escritório e à biblioteca. São quatro salas repletas de livros, divididas por temas e por autores em ordem alfabética. A sala em que trabalha abriga aquilo que ele chama de "ala das ciências banidas", como ocultismo, sociedades secretas, mesmerismo, esoterismo, magia e bruxaria. Ali, em um cômodo pequeno, estão as fontes principais dos romances de sucesso de Eco: O nome da rosa (1980), O pêndulo de Foucault (1988), A ilha do dia anterior (1994), Baudolino (2000), A misteriosa chama da rainha Loana (2004) e O cemitério de Praga. Publicado em 2010 e lançado com sucesso no Brasil em 2011, o livro provocou polêmica por tratar de forma humorística de um assunto sério: o surgimento do antissemitismo na Europa. Por motivos diversos, protestaram a igreja católica e o rabino de Roma: aquela porque Eco satirizava os jesuítas ("são maçons de saia", diz o personagem principal, o odioso tabelião Simone Simonini), este porque as teorias conspiratórias forjadas no século XIX - como o Protocolo dos sábios do Sião - poderiam gerar uma onda de ódio aos judeus. Desde o início da carreira, em 1962, como autor do ensaio estético Obra aberta, Eco gosta de provocar esse tipo de reação. Mesmo aos 80 anos, que completa em 5 de janeiro, parece não perder o gosto pelo barulho. De muito bom humor, ele conversou com Época durante duas horas sobre a idade, o gênero que inventou - o suspense erudito -, a decadência europeia e seu assunto mais constante nos últimos anos: a morte do livro. É de pasmar, mas o maior inimigo da leitura pelo computador está revendo suas posições - e até gostando de ler livros... pelo iPad que comprou durante sua última turnê americana.

ÉPOCA - Como o senhor se sente, completando 80 anos?

Umberto Eco - Bem mais velho! (Risos.) Vamos nos tornando importantes com a idade, mas não me sinto importante nem velho. Não posso reclamar de rotina. Minha vida é agitada. Ainda mantenho uma cátedra no Departamento de Semiótica e Comunicação da Universidade de Bolonha e continuo orientando doutorandos e pós-doutorandos. Dou muita palestra pelo mundo afora. E tenho feito turnês de lançamento de O cemitério de Praga. Acabo de voltar de uma megaexcursão pelos Estados Unidos. Ela quase me custou o braço. Estou com tendinite de tanto dar autógrafos em livros.

ÉPOCA - O senhor tem sido um dos mais ferrenhos defensores do livro em papel. Sua tese é de que o livro não vai acabar. Mesmo assim, estamos assistindo à popularização dos leitores digitais e tablets. O livro em papel ainda tem sentido?

Eco - Sou colecionador de livros. Defendi a sobrevivência do livro ao lado de Jean-Claude Carrière no volume Não contem com o fim do livro. Fizemos isso por motivos estéticos e gnoseológicos (relativo ao conhecimento). O livro ainda é o meio ideal para aprender. Não precisa de eletricidade, e você pode riscar à vontade. Achávamos impossível ler textos no monitor do computador. Mas isso faz dois anos. Em minha viagem pelos Estados Unidos, precisava carregar 20 livros comigo, e meu braço não me ajudava. Por isso, resolvi comprar um iPad. Foi útil na questão do transporte dos volumes. Comecei a ler no aparelho e não achei tão mau. Aliás, achei ótimo. E passei a ler no iPad, você acredita? Pois é. Mesmo assim, acho que os tablets e e-books servem como auxiliares de leitura. São mais para entretenimento que para estudo. Gosto de riscar, anotar e interferir nas páginas de um livro. Isso ainda não é possível fazer num tablet.

ÉPOCA - Apesar dessas melhorias, o senhor ainda vê a internet como um perigo para o saber?

Eco - A internet não seleciona a informação. Há de tudo por lá. A Wikipédia presta um desserviço ao internauta. Outro dia publicaram fofocas a meu respeito, e tive de intervir e corrigir os erros e absurdos. A internet ainda é um mundo selvagem e perigoso. Tudo surge lá sem hierarquia. A imensa quantidade de coisas que circula é pior que a falta de informação. O excesso de informação provoca a amnésia. Informação demais faz mal. Quando não lembramos o que aprendemos, ficamos parecidos com animais. Conhecer é cortar, é selecionar. Vamos tomar como exemplo o ditador e líder romano Júlio César e como os historiadores antigos trataram dele. Todos dizem que foi importante porque alterou a história. Os cronistas romanos só citam sua mulher, Calpúrnia, porque esteve ao lado de César. Nada se sabe sobre a viuvez de Calpúrnia. Se costurou, dedicou-se à educação ou seja lá o que for. Hoje, na internet, Júlio César e Calpúrnia têm a mesma importância. Ora, isso não é conhecimento.

ÉPOCA - Mas o conhecimento está se tornando cada vez mais acessível via computadores e internet. O senhor não acha que o acesso a bancos de dados de universidades e instituições confiáveis estão alterando nossa noção de cultura?

Eco - Sim, é verdade. Se você sabe quais os sites e bancos de dados são confiáveis, você tem acesso ao conhecimento. Mas veja bem: você e eu somos ricos de conhecimento. Podemos aproveitar melhor a internet do que aquele pobre senhor que está comprando salame na feira aí em frente. Nesse sentido, a televisão era útil para o ignorante, porque selecionava a informação de que ele poderia precisar, ainda que informação idiota. A internet é perigosa para o ignorante porque não filtra nada para ele. Ela só é boa para quem já conhece – e sabe onde está o conhecimento. A longo prazo, o resultado pedagógico será dramático. Veremos multidões de ignorantes usando a internet para as mais variadas bobagens: jogos, bate-papos e busca de notícias irrelevantes.

ÉPOCA - Há uma solução para o problema do excesso de informação?

Eco - Seria preciso criar uma teoria da filtragem. Uma disciplina prática, baseada na experimentação cotidiana com a internet. Fica aí uma sugestão para as universidades: elaborar uma teoria e uma ferramenta de filtragem que funcionem para o bem do conhecimento. Conhecer é filtrar.

ÉPOCA - O senhor já está pensando em um novo romance depois de O cemitério de Praga?

Eco - Vamos com calma. Mal publiquei um e você já quer outro. Estou sem tempo para ficção no momento. Na verdade, vou me ocupar agora de minha autobiografia intelectual. Fui convidado por uma instituição americana, Library of Living Philosophers, para elaborar meu percurso filosófico. Fiquei contente com o convite, porque passo a fazer parte de um projeto que inclui John Dewey, Jean-Paul Sartre e Richard Rorty - embora eu não seja filósofo. Desde 1939, o instituto convida um pensador vivo para narrar seu percurso intelectual em um livro. O volume traz então ensaios de vários especialistas sobre os diversos aspectos da obra do convidado. No final, o convidado responde às dúvidas e críticas levantadas. O desafio é sistematizar de uma forma lógica tudo o que já fiz...

ÉPOCA - Como lidar com tamanha variedade de caminhos?

Eco - Estou começando com meu interesse constante desde o começo da carreira pela Idade Média e pelos romances de Alessandro Manzoni. Depois vieram a Semiótica, a teoria da comunicação, a filosofia da linguagem. E há o lado banido, o da teoria ocultista, que sempre me fascinou. Tanto que tenho uma biblioteca só do assunto. Adoro a questão do falso. E foi recolhendo montes de teorias esquisitas que cheguei à ideia de escrever O cemitério de Praga.

ÉPOCA - Entre essas teorias, destaca-se a mais célebre das falsificações, O protocolo dos sábios de Sião. Por que o senhor se debruçou sobre um documento tão revoltante para fazer ficção?

Eco - Eu queria investigar como os europeus civilizados se esforçaram em construir inimigos invisíveis no século XIX. E o inimigo sempre figura como uma espécie de monstro: tem de ser repugnante, feio e malcheiroso. De alguma forma, o que causa repulsa no inimigo é algo que faz parte de nós. Foi essa ambivalência que persegui em O cemitério de Praga. Nada mais exemplar que a elaboração das teorias antissemitas, que viriam a desembocar no nazismo do século XX. Em pesquisas, em arquivos e na internet, constatei que o antissemitismo tem origem religiosa, deriva para o discurso de esquerda e, finalmente, dá uma guinada à direita para se tornar a prioridade da ideologia nacional-socialista. Começou na Idade Média a partir de uma visão cristã e religiosa. Os judeus eram estigmatizados como os assassinos de Jesus. Essa visão chegou ao ápice com Lutero. Ele pregava que os judeus fossem banidos. Os jesuítas também tiveram seu papel. No século XIX, os judeus, aparentemente integrados à Europa, começaram a ser satanizados por sua riqueza. A família de banqueiros Rotschild, estabelecida em Paris, virou um alvo do rancor social e dos pregadores socialistas. Descobri os textos de Léo Taxil, discípulo do socialista utópico Fourier. Ele inaugurou uma série de teorias sobre a conspiração judaica e capitalista internacional que resultaria em Os protocolos dos sábios do Sião, texto forjado em 1897 pela polícia secreta do czar Nicolau II.

ÉPOCA - O senhor considera os Procotolos uma das fontes do nazismo?

Eco - Sem dúvida. Adolf Hitler, em sua autobiografia, Minha luta, dava como legítimo o texto dos Protocolos. Hitler tomou como verdadeira uma falsificação das mais grosseiras, e essa mentira constitui um dos fundamentos do nazismo. A raiz do antissemitismo vem de muito antes, de uma construção do inimigo, que partiu de delírios e paranoias.

ÉPOCA - O personagem de O cemitério de Praga, Simone Simonini, parece concentrar todos os preconceitos e delírios europeus do século XIX. Ele é ao mesmo tempo antissemita, anticlerical, anticapitalicas e antissocialista. Como surgiu na sua mente alguém tão abominável?

Eco - Os críticos disseram que Simonini é o personagem mais horroroso da literatura de todos os tempos, e devo concordar com eles. Ele também é muito divertido. Seus excessos estão ali para provocar riso e revolta. No romance, Simonini é a única figura fictícia. Guarda todos os preconceitos e fantasias sobre um inimigo que jamais conhece. E se desdobra em várias personalidades: durante o dia, atua como tabelião falsificador de documentos; à noite, traveste-se em falso padre jesuíta e sai atrás de aventuras sinistras. Acaba virando joguete dos monarquistas, que se opõem à unificação da Itália, e, por fim, dos russos. Imaginei Simonini como um dos autores de Os protocolos dos sábios do Sião.

ÉPOCA - A falsificação sobre falsificações permitida pela ficção tornou o livro controverso. Ele tem provocado reações negativas. O senhor gosta de lidar com polêmicas?

Eco - A recepção tem sido positiva. O livro tem feito sucesso sem precisar de polêmicas. Quando foi lançado na Itália, ele gerou alguma discussão. O L'osservatore Romano, órgão oficial do Vaticano, publicou um artigo condenando os ataques do livro aos jesuítas. Não respondi, porque sou conhecido como um intelectual anticlerical - e já havia discutido com a igreja católica no tempo de O nome da rosa, quando me acusaram de atacar a igreja. O rabino de Roma leu O cemitério de Praga e advertiu em um pronunciamento que as teorias contidas no livro poderiam se tornar novamente populares a partir da obra. Respondi a ele que não havia esse perigo. Ao contrário, se Simonini serve para alguma coisa, é para provocar nossa indignação.

ÉPOCA - Além de falsário, Simonini se revela um gourmet. Ao longo do livro, o senhor joga listas e listas de receitas as mais extravagantes, que Simonini comenta com volúpia. O senhor gosta de gastronomia?

Eco - Eu sou MacDonald's! Nunca me incomodei com detalhes de comida. Pesquisei receitas antigas com um objetivo preciso: causar repugnância no leitor. A gastronomia é um dado negativo na composição do personagem. Quando Simonini discorre sobre pratos esquisitos, o leitor deve sentir o estômago revirado.

ÉPOCA - Qual o sentido de escrever romances hoje em dia? O que o atrai no gênero?

Eco - Faz todo o sentido escrever ficção. Não vejo como fazer hoje narrativa experimental, como James Joyce fez com Finnegan's Wake, para mim a fronteira final da experimentação. Houve um recuo para a narrativa linear e clássica. Comecei a escrever ficção nesse contexto de restauração da narratividade, chamado de pós-modernismo. Sou considerado um autor pós-moderno, e concordo com isso. Vasculho as formas e artifícios do romance tradicional. Só que procuro introduzir temas que possam intrigar o leitor: a teoria da comédia perdida de Aristóteles em O nome da rosa; as conspirações maçônicas em O pêndulo de Foucault; a imaginação medieval em Baudolino; a memória e os quadrinhos em A misteriosa chama; a construção do antissemitismo em O cemitério de Praga. O romance é a realização maior da narratividade. E a narratividade conserva o mito arcaico, base de nossa cultura. Contar uma história que emocione e transforme quem a absorve é algo que se passa com a mãe e seu filho, o romancista e seu leitor, o cineasta e seu espectador. A força da narrativa é mais efetiva do que qualquer tecnologia.

ÉPOCA - Philip Roth disse que a literatura morreu. Qual a sua opinião sobre os apocalípticos que preveem a morte da literatura?

Eco - Philip Roth é um grande escritor. A contar com ele, a literatura não vai morrer tão cedo. Ele publica um romance por ano, e sempre de boa qualidade. Não me parece que nem o romance nem ele pretendem interromper a carreira (risos).

ÉPOCA - Mas por que hoje não aparecem romancistas do porte de Liev Tolstói e Gustave Flaubert?

Eco - Talvez porque ainda não os descobrimos. Nada acontece imediatamente na literatura. É preciso esperar um pouco. Devem certamente existir Tolstóis e Flauberts por aí. E têm surgido ótimos ficcionistas em toda parte.

ÉPOCA - Como o senhor analisa a literatura contemporânea?

Eco - Há bons autores medianos na Itália. Nada de genial, mas têm saído livros interessantes de autores bastante promissores. Hoje existe o thriller italiano, com os romances de suspense de Andrea Camilleri e seus discípulos. No entanto, um signo do abalo econômico italiano é que é mais possível um romancista viver de sua obra literária, como fazia (Alberto) Moravia. Hoje romance virou uma atividade diletante. É diferente do que ocorre nos Estados Unidos, aindaum polo emissor de ótima ficção e da profissionalização dos escritores. Além dos livros de Roth, adorei ler Liberdade, de Jonathan Franzen, um romance de corte clássico e repleto de referências culturais. A França, infelizmente, experimenta uma certa decadência literária, e nada de bom apareceu nos últimos tempos. O mesmo parece se passar com a América Latina. Já vão longe os tempos do realismo fantástico de García Márquez e Jorge Luis Borges. Nada tem vindo de lá que me pareça digno de nota.

ÉPOCA - E a literatura brasileira? Que impressões o senhor tem do Brasil? O país lhe parece mais interessante hoje do que há 30 anos?

Eco - O Brasil é um país incrivelmente dinâmico. Visitei o Brasil há muito tempo, agora acompanho de longe as notícias sobre o país. A primeira vez foi em 1966. Foi quando visitei terreiros de umbanda e candomblé - e mais tarde usei essa experiência em um capítulo de O pêndulo de Foucault para descrever um ritual de candomblé. Quando voltei em 1978, tudo já havia mudado, as cidades já não pareciam as mesmas. Imagino que hoje em dia o Brasil esteja completamente transformado. Não tenho acompanhado nada do que se faz por lá em literatura. Eu era amigo do poeta Haroldo de Campos, um grande erudito e tradutor. Gostaria de voltar, tenho muitos convites, mas agora ando muito ocupado... comigo mesmo.

ÉPOCA - O senhor foi o criador do suspense erudito. O modelo é ainda válido?

Eco - Em O nome da Rosa, consegui juntar erudição e romance de suspense. Inventei o investigador-frade William de Baskerville, baseado em Sherlock Holmes de Conan Dolyle, um bibliotecário cego inspirado em Jorge Luis Borges, e fui muito criticado porque Jorge de Burgos, o personagem, revela-se um vilão. De qualquer forma, o livro foi um sucesso e ajudou a criar um tipo de literatura que vejo com bons olhos Sim, há muita coisa boa sendo feita. Gosto de (Arturo) Pérez-Reverte, com seus livros de fantasia que lembram os romances de aventura de Alexandre Dumas e Emilio Salgari que eu lia quando menino.

ÉPOCA - Lendo seus seguidores, como Dan Brown, o senhor às vezes não se arrepende de ter criado o suspense erudito?

Eco - Às vezes, sim! (risos) O Dan Brown me irrita porque ele parece um personagem inventado por mim. Em vez de ele compreender que as teorias conspiratórias são falsas, Brown as assume como verdadeiras, ficando ao lado do personagem, sem questionar nada. É o que ele faz em O Código Da Vinci. É o mesmo contexto de O pêndulo de Foucault. Mas ele parece ter adotado a história para simplificá-la. Isso provoca ondas de mistificação. Há leitores que acreditam em tudo o que Dan Brown escreve - e não posso condená-los.

ÉPOCA - O que vem antes na sua obra, a teoria ou a ficção?

Eco - Não há um caminho único. Eu tanto posso escrever um romance a partir de uma pesquisa ou um ensaio que eu tenha feito. Foi o caso de O pêndulo de Foucault, que nasceu de uma teoria. Baudolino resultou de ideias que elaborei em torno da falsificação. Ou vice-versa. Depois de escrever O cemitério de Praga, me veio a ideia de elaborar uma teoria, que resultou no livro Costruire il Nemico (Construir o Inimigo, lançado em maio de 2011). E nada impede que uma teoria nascida de uma obra de ficção redunde em outra ficção.

ÉPOCA - Quando escreve, o senhor tem um método ou uma superstição?

Eco - Não tenho nenhum método. Não sou com Alberto Moravia, que acordava às 8h, trabalhava até o meio-dia, almoçava, e depois voltava para a escrivaninha. Escrevo ficção sempre que me dá prazer, sem observar horários e metodologias. Adoro escrever por escrever, em qualquer meio, do lápis ao computador. Quando elaboro textos acadêmicos ou ensaio, preciso me concentrar, mas não o faço por método.

ÉPOCA - Como o senhor analisa a crise econômica italiana? Existe uma crise moral que acompanha o processo de decadência cultural? A Itália vai acabar?

Eco - Não sou economista para responder à pergunta. Não sei por que vocês jornalistas estão sempre fazendo perguntas (risos). Talvez porque eu tenha sido um crítico do governo Silvio Berlusconi nesses anos todos, nos meus artigos de jornal, não é mesmo? Bom, a Itália vive uma crise econômica sem precedentes. Nos anos Berlusconi, desde 2001, os italianos viveram uma fantasia, que conduziu à decadência moral. Os pais sonhavam com que as filhas frequentassem as orgias de Berlusconi para assim se tornarem estrela da televisão. Isso tinha de parar, acho que agora todos se deram conta dos excessos. A Itália continua a existir, apesar de Berlusconi.

ÉPOCA - O senhor está confiante com a junção Merkozy (Nicolas Sarkozy e Angela Merkel) e a ascensão dos tecnocratas, como Mario Monti como primeiro ministro da Itália?

Eco - Se não há outra forma de governar a zona do Euro, o que fazer? Merkel tem o encargo, mas também sofre pressões em seu país, para que deixe de apoiar países em dificuldades. A ascensão de Monti marca a chegada dos tecnocratas ao poder. E de fato é hora de tomar medidas duras e impopulares que só tecnocratas como Monti, que não se preocupa com eleição, podem tomar, como o corte nas aposentadorias e outros privilégios.

ÉPOCA - O que o senhor faz no tempo livre?

Eco - Coleciono livros e ouço música pela internet. Tenho encontrado ótimas rádios virtuais. Estou encantado com uma emissora que só transmite música coral. Eu toco flauta doce (mostra cinco flautas de variados tamanhos), mas não tenho tido tempo para praticar. Gosto de brincar com meus netos, uma menina e um menino.

ÉPOCA - Os 80 anos também são uma ocasião para pensar na cidade natal. Como é sua ligação com Alessandria?

Eco - Não é difícil voltar para lá, porque Alessandria fica a uns 100 quilômetros de Milão. Aliás foi um dos motivos que escolhi morar por aqui: é perto de Bolonha e de Alessandria. Quando volto, sou recebido como uma celebridade. Eu e o chapéu Borsalino, somos produção de Alessandria! Reencontro velhos amigos no clube da cidade, sou homenageado, bato muito papo. Não tenho mais parentes próximos. É sempre emocionante.